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Review: Um olhar sobre “Rotações”, de Luiz Castelões

Título simples e direto: nome do compositor e nome do CD. Não tem porque ficar inventando muito. A compulsão de inventar pode ser acompanhada na escuta das 23 faixas. Opinião de pesquisador: é uma produção que dá panos para mangas. Opinião de ouvinte: temos algo que intriga, diferente do habitual. De saída tudo é vislumbre, os sons não são autoexplicativos (salvo alguns poucos instantes). Rotações , de Luiz Castelões, é um convite para ampliar seu conhecimento musical; uma ode que pode levar a um universo antes desconhecido.

O CD é composto por cinco peças e seus diversos movimentos. São dois quartetos, duas peças para piano solo e uma eletroacústica, chamada “Rotações”. Esta é a última faixa do CD, sólida e sozinha como desfecho, uma “vinheta eletrônica”, como descreve Castelões, intitulação que resume uma ideia central, presente ao longo do CD: o swing da música pop, aquela sensação de ter um ritmo orgânico, descrito como uma série de círculos com variadas dimensões, rotacionando simultaneamente. Vale uma analogia com o vinil, algo do tipo: colocarmos ele para girar, com duas agulhas para tocar em dois pontos distintos.

A produção do CD é independente. A única exceção é do apoio indireto do Ibermúsicas na gravação do segundo quarteto, “7 Fábricas”. Quando lhe perguntei sobre a necessidade de fazer um CD, já que grande parte de seu repertório se encontra online, Castelões me respondeu o seguinte: “A qualidade do streaming é inferior à de um CD. O CD me possibilita criar uma experiência total, mais material, palpável, de fruição das músicas. Há um certo nicho de divulgação , gerações anteriores, por exemplo, que a Internet quase não atinge. Nesse nicho, o CD ainda tem um papel. Há na internet um certo caráter efêmero: receber um e-mail com um link para download é muito menos impactante e afetivo do que receber um CD pelo correio”.

A ideia do Pop que é evocada, não é só de um pop de rádio. É também de popular, de um Noel Rosa. Figura que ocupa grande espaço nas peças. Ele inspira e às vezes transpira; como um personagem que aparece, pois, sua melodia está ali, vívida, porém distorcida. Para Luiz, Noel “é um ícone da música popular. Um ‘clássico’ da música ‘popular”. Tipo de figura que bagunça as fronteiras. Importante!

Assim, temos 5 sons para Noel Rosa, a peça de abertura. São cinco sons porque são cinco músicas, cinco movimentos. Coloquialmente, pode-se dizer que “som” é “música”. A analogia de quantidades faz sentido. Noel ressurge como “erudito”. Castelões confessa não ter pensado em harmonia, a não ser quando parte de algum material original de Noel. A execução da peça ficou na responsabilidade do Quarteto Maurice, que em um nível de escuta bastante específico, se metamorfoseou em um imenso instrumento de cordas dedilhadas (algo como um violão ou um bandolim expandido). 80% da peça é pizzicato.

Os dois primeiros movimentos você fica procurando Noel. Tudo porque o título disse. Bem há um samba ou um choro. Você, num primeiro momento, pode ficar um pouco perdido, não sabe se é alusão a harmonia ou a melodia. Os círculos em rotações estão ali, guiando a escuta. A noção rítmica sempre é forte. A coisa começa a ser esclarecida no terceiro movimento, subtítulo, “Meu Barracão”. Uma canção de Noel. A melodia original aparenta. Utilizar o verbo “aparecer” seria equivocado. É mas não é.

No quarto movimento a “confusão” volta. Se seus ouvidos estiverem querendo escutar algo meio bossa-nova, pode até ser. Novamente, não é. É bossa, porque o samba influenciou a bossa. Portanto, Noel está em algum lugar ali. A liberdade soa jazz. Só que não é um Jazz, assim com letra maiúscula, chama-se “Micro-Jazz”. Um “jazz Noel” à la Luiz Castelões.

A aventura tem algum alívio de conforto e semelhança no “Último desejo”. No quinto movimento, o último som aparece. Um Noel polifônico. Ele está ali. Disfarçado de “erudito”; pleno, porém distorcido. A letra original está na partitura, apesar de não ser cantada por vozes humanas, mas aparece nas vozes superiores do quarteto, preservando a harmonia e melodias originais. Trata-se, de um arranjo composição.

Pop Suite é a segunda peça. Interpretada pela pianista Bianca Oglice. A pompa de um quarteto de cordas como instrumento de cordas dedilhadas dá espaço ao piano solo, instrumento já estendido por natureza. Na conversa com Castelões, ele me explicou o pulo do gato. O segredo é revelado no último movimento, “Estudo Pop”. Ele que dá o material inicial que une todos os sete movimentos.

A atmosfera soa música contemporânea. Um piano Boulez ou Stockhausen, quem sabe. Só que a sonoridade é mais diversificada, um pouco mais abrasileirada e menos dura, como com os europeus. Sua peça é mais rápida, não tanto pelo lado virtuosístico, mas sim por ocorrerem mais eventos em um curto espaço tempo. A duração dos movimentos é curta, ideias mais diretas e menos prolixo. O que impera é o “Pop”. Castelões disse que o que “atrai no Pop e, frequentemente, na música popular em geral, é justamente sua capacidade de síntese. Sem a enrolação, a pretensão, a pompa, a sisudez e a afetação que habitam boa parte do repertório ‘erudito’, sobretudo o romântico”. Ao final, mesmo que não tenhamos uma forma única, temos a forma Suíte, que no repertório erudito se refere a um conjunto de danças. E a música de Castelões, como ele mesmo diz é dançante. Só que de danças inventadas.

“Quando o apito / Da fábrica de tecidos / Vem ferir os meus ouvidos...”

“When the whistle / From the fabric factory / Comes and hurts my ears...”

(Noel Rosa, Três Apitos, 1934)

Os versos acima antecedem a partitura que se inicia, 7 Fábricas é a terceira peça do CD. A interpretação é um tanto quanto livre. Mas, ela existe. As quantidades e qualidades sonoras retornam, assim como em “5 Sons para Noel Rosa”. Em português, “Fábrica” significa o pulsar do ritmo de cada máquina da fábrica. Também tem relação com o timbre, o som da máquina em si, apesar de não existir a imitação destas na peça. Já em inglês, “Fabric”, significa tecido. Agora relacionando-se com a amarração pela qual os instrumentos se encontram, resultando no tecido final de cada um dos sete movimentos.

Neste segundo quarteto a relação dos movimentos em si é mais áspera. No primeiro o erudito e o popular se encontravam com mais serenidade. Em “7 Fábricas” os movimentos contemporâneos são menos “Pop” e os populares menos contemporâneos. Os movimentos “Rock” e o “Pop”, são riffs, grooves que se mantêm ao longo de todo o movimento. O “Estudo Ascensão”, primeiro movimento, possui um ritmo liso, estendido, com passagens quase inaudíveis – bem anti-Pop. E o “Autorama” é pura imitação de carros. O carro é um personagem da canção do Noel que serviu de material inicial da obra como um todo.

A melodia de “3 apitos” de Noel Rosa convive de forma carnavalesca quase escondida atrás da polifonia do último movimento, “Fast Forward”. A curiosidade deste movimento, foi o fato de algumas passagens terem sido reescritas durante o processo de gravação. O interesse do compositor no som caótico e apressado, quase beirou ao impossível na hora da interpretação. “Ficou melhor, graças à crítica dos colegas”, afirma Castelões.

Lembra quando foi falado em uma compulsão inventiva no primeiro parágrafo. A quarta peça, 3 Transcrições é isso. Um processo de conversão transcrito para a partitura, que no CD, contou com a interpretação da pianista Grazi Elis. Mas conversão do quê? Daí a invenção.

Castelões desenvolveu um método de composição que converte uma imagem digital em sons, utilizando a aplicação OpenMusic. Aí vem a pergunta, se é um processo de conversão, não é de composição, correto? Errado! De fato, trata-se de um processo literal no sentido de que não há a criação de notas, ritmos ou dinâmicas. São informação advindas das cores numa imagem. No entanto, há muito trabalho no sentido de que foi o compositor quem desenvolveu a tecnologia; os parâmetros foram controlados de forma a se obter música; e o compositor sempre intervém nos resultados das conversões, no intuito de obter mas musicabilidade, tocabilidade e legibilidade. Este processo utilizado em “3 Transcrições” é o mesmo em Rotações, a última faixa. A diferença é que uma foi feita para o piano solo. A outra ganhou vida eletroacusticamente, utilizando recursos MIDI.

A música de Luiz Castelões é um convite a conhecer possibilidades. É algo que vai para além daquela trilha sonora que escolhemos para nosso dia-a-dia. Ela apresenta uma outra experiência, contemporânea no sentido de conhecermos sonoridades do século XX, mas também atual, muito atual. Esse é seu grande trunfo como compositor, entender o momento, as tecnologias e propor novas escutas.


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