Música pela democracia
- Karoline Discaciati e Túlio Matos
- 8 de abr. de 2016
- 6 min de leitura
Na última terça, dia 05 de abril, músicos e compositores de Juiz de Fora se reuniram em um ato a favor da democracia. Pela quantidade de violões encostados pelos cantos do anfiteatro da Faculdade de Direito da UFJF, já dava pra fazer uma estimativa de quantos artistas faziam parte do movimento. Era coisa séria, era coisa em que corda arrebentada não interromperia show nenhum.
Depois de ficar algum tempo admirando a primeira fila de cadeiras composta por Laura Jannuzzi, Renato da Lapa, Cacáudio, Julio Satyro, Roger Resende e Joana Machado, me peguei lembrando sobre como a união de artistas em um momento político tão complexo me lembrava alguns festivais que aconteciam anos antes de nascer e que, algum tempo depois, acabaram me conquistando. A última da fila se levantou e quebrou o silêncio. Com a palavra, ainda não cantada, Joana contextualizou o evento e questionou o conceito de democracia em que vivemos.
A semente inicial foi plantada quando Joana começou a se envolver mais com o Encontro de Compositores e, depois de um tempo, brotou a ideia de se fazer uma mobilização contra o golpe e pela democracia por meio da arte. “A partir daí, a concepção foi coletiva de como se montaria o repertório, pra tentar contemplar o que está ameaçado na democracia, mas também o que precisa ser conquistado ainda”. Cantou-se a liberdade, o papel da mídia na sociedade, a luta do pobre e do preto, a educação como modificadora social, a questão da terra. Música e arte se fizeram elementos de renovação de energia. Não foram levantadas bandeiras de partido, era apenas a voz da arte pela democracia e por direitos que há muito vem sendo buscados e que são urgentes na sociedade atual.
O primeiro a se levantar e pegar um dos violões foi Julio Satyro, que, antes da primeira música, lembrou que “isso tudo que tá aí” existe desde a biografia de Adão, uma história que não é contada por nenhuma religião, mas não escapou dos poetas. Então, lá dos primórdios da história da humanidade, abriu os paladares do evento com “Adão”, do Paulo Leminsky. Julio seguiu em um Tom só: o Zé. Era hora de “Politicar”, mas seria uma “Burrice” imensa fazer isso sozinho. Na terceira música, Clara Dustan subiu ao palco e, enquanto Julio repetia o trecho “veja que beleza”, Clara esfregava a revista que carrega o nome do único verbo do trecho na cara do público. Depois de ler, cheirar e lamber a revista, Clara rasgou uma série de diferentes jornais, que acabaram virando cenário para o resto das apresentações. Sobre as músicas apresentadas por ele, Julio Satyro disse que “apesar de serem músicas distantes da gente no tempo, coisa de 20, 30 anos atrás, elas têm uma lucidez muito grande pra reflexão sobre o atual momento”.

Julio Satyro iniciou as apresentações com clássicos da música brasileira
Pedro Teixeira foi o primeiro a tocar em meio aos jornais. Antes de começar sua apresentação, disse que “eles querem nosso luto, mas terão música, festa, poesia. A nossa luta!”. Em meio a aplausos, começou a composição própria “BBB”, uma crítica às bancadas da bíblia, da bala e do boi. “É uma música um pouco mais dura, de protesto, mas é uma música que quer, de alguma forma, iluminar sobre uma situação que a gente tá sendo um pouco refém já há algum tempo”.
Guido del’ Duca foi o primeiro cantar a capella (na verdade, seu fiel bumbo imaginário esteve presente no pé esquerdo marcando cada compasso). “O trono do estudar”, composição de Dani Black, que marcou as ocupações de escolas em São Paulo, foi a canção escolhida para começar a apresentação do homem banda. Enquanto Renato da Lapa se preparava para entrar na próxima música, Guido lembrou que sorte é uma coisa definida pela cor e por onde se nasceu. E foi assim que “Morro Velho”, de Milton Nascimento, tomou o anfiteatro.

Guido Del'Duca em apresentação a capella da música O Trono do Estudar
Renato da Lapa ainda não tinha acabado sua apresentação, foi o primeiro a permanecer no palco enquanto os artistas se revezavam. Apresentada por Guido como a melhor cantora do Brasil, Laura Jannuzzi foi a primeira mulher a integrar o time e, quando a voz parecia não ser válvula de escape o suficiente para a letra, descontava o descontentamento no saião colorido que usava. A primeira música entoada pela doce voz de Laura foi “Moacir”, composição de Nega Lucas, e que busca, partindo do romantismo de José de Alencar em Iracema, problematizar a situação indígena atual no país. Depois foi a vez do “Lamento Sertanejo”, de Gilberto Gil e Dominguinhos, que narra de forma poética as dificuldades do povo do sertão.

Renato da Lapa e Laura Januzzi apresentaram Moacir e Lamento Sertanejo
Ainda sobre os primeiros, Arnaldo Huff foi o primeiro a cantar em outra língua. Começou com um dos hinos do Rio Grande do Sul, “Horizontes”, composição do Flávio Bicca. Depois, “Viração”, de Kleiton Teixeira, vinha anunciar que “na minha terra, um palmo acima do chão, sopra uma brisa ligeira que vai virar viração”. Para finalizar, chamou ao palco Dudu Costa e, juntos, cantaram “Luz del Alba”, composição com trechos em português e em espanhol presente no Pampas Geraes, que deixou todo mundo tão ansioso para agradecer pelo momento, que recebeu aplausos antecipados em uma pausa próxima do final.
Dudu Costa foi o primeiro a tocar com um chapéu (oras, vai dizer que isso não conta?). “Zé do Caroço” (ai, como eu queria que tivesse outro) deu continuação à apresentação. Era hora de falar das “lideranças populares que conseguem romper um conjunto de barreiras e propor uma mobilização e uma organização de suas comunidades pra buscar uma sociedade mais justa”, como disse Dudu. Depois, ele chamou mais um parceiro ao palco, Edson Leão. Os dois se revezavam entre vocal principal e backing vocal com uma fluidez que até deixava a impressão de que era fácil fazer aquela variação de tons. “Aroeira”, de Geraldo Vandré, foi a escolhida para deixar alguns olhos marejados. Dudu, que além de músico é professor de História, acredita que “é preciso politizar mais a universidade, então trazer esse tipo de evento é um ponto importante e só o começo de coisas que podemos fazer nesse sentido”.
Edson Leão foi o primeiro a chamar um parceiro de surpresa. A convocação de Roger Resende não atrapalhou em nada a execução de “O mestre-sala dos mares” de João Bosco e Aldir Blanc, pelo contrário, os dois estavam afiadíssimos e afinadíssimos.

Ao todo, 12 artistas da cidade se apresentaram em ato a favor da democracia
Roger Resende permaneceu no palco e foi o primeiro a tocar Chico Buarque. “Samba de Orly” veio logo depois da composição própria com Bruno Tuler, “Tumbeiros”. Chico e Roger tiveram o mesmo intérprete e a mesma recepção do público. Muito aplaudido, o sambista lançou que “o importante é a gente continuar batendo tambor porque golpe aqui, meu amigo, é ruim!”.
Gilbert Salles também foi recrutado de surpresa. Mais uma surpresa bem das boas. Foi o primeiro a perceber que uma das músicas que iria tocar, já tinha sido tocada. Nada que fosse grande o suficiente para parar o vozeirão do Gilbert, que deu novos ares à “Comportamento Geral”, de Gonzaguinha, que cutuca quem acha que está tudo bem em “tudo vai bem, tudo vai legal. Cerveja, samba e amanhã, seu Zé? Se acabarem com seu carnaval?”. Logo em seguida voltou a cutucar e harmonizar com a composição própria “Língua Universal”. “É uma música que partiu dos meus questionamentos sobre como nós, seres humanos, complicamos a nossa convivência na Terra. Seria tão mais simples se todos nós falássemos o idioma do amor. Com certeza teríamos menos conflitos e, de certa forma, coexistiríamos em maior harmonia”.
Cacáudio assumiu em seguida. Ele começou com “Meu guri” do Chico, que na verdade foi interpretada por ele e por todo o público. Para dar continuidade, Cacáudio levou um poema musicado de Fernando Pessoa, “Conselho”, em que dizia, em tom de metáfora à toda abordagem midiática: “Cerca de grandes muros quem te sonhas./ Depois, onde é visível o jardim/ Através do portão de grade dada/ Põe quantas flores são as mais risonhas/ Para que te conheçam só assim”. Terminou com a composição de Julinho de Adelaide que ficou conhecida com Chico Buarque, “Acorda Amor”. Aplaudido, aplaudia junto com o público.
Joana Machado subiu de novo ao palco com uma interpretação de “Cálice”, de Chico Buarque, falou que parecia meio clichê escolher essa música, mas, nos dias de hoje, ela pode ser interpretada por toda pessoa invisibilizada pela sociedade: negros, mulheres, pobres (insira aqui quem mais você achar justo). Com Cacáudio no violão, a música tomou ares de Juiz de Fora e parecia estar tão em casa quanto Joana na faculdade de Direito.

Joana Machado, professora da Faculdade de Direito e uma das idealizadoras do evento
No final, todo mundo foi o primeiro a fechar o show. Joana Machado chamou todos os artistas presentes para cantar em coro “O cio da Terra”. Logo depois, Pedro Teixeira assumiu o violão e o microfone e, ainda com todos em coro, cantou “Água”, pedindo a todos para terem calma para passar por esse momento delicado. Encerrou a canção com um “pa papapapa”, que mesmo após cessar, seguiu em meus pensamentos, não me deixando esquecer tudo o que havia sido dito, cantado, plantado.
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