Custe o que custar: Apesar do ingresso caro, Festival MecaInhotim promove diversidade de expressões,
- Colaboração de Júlia Pessôa
- 11 de nov. de 2016
- 9 min de leitura
Sempre que repeti - e continuo ecoando - a frase "estou muito velha para festival", eu tenho em mente o mar de gente do Rock in Rio, fila pra banheiro, fila pra comida, e uma fila de shows que eu não quero assistir para, finalmente, no fim de um longo dia, assistir a atração que eu quero. Mas quando vi que existia um evento na face desta Terra que reuniria Caetano Veloso e Liniker no Inhotim, eu sabia que tinha que ir.

Foto: Diogo Narita/Instituto Inhotim
Para começo de conversa o Instituto Inhotim, uma mistura de museu de arte contemporânea com parque com instalações ao ar livre, é das duas, uma: ou o melhor passeio que você ainda não fez, ou aquele que você quer refazer. No meu caso, era a segunda opção, e eu já estava ansiosa pelo reencontro. Além dos espaços naturais paradisíacos (e olha que não gasto adjetivos deste calibre com qualquer coisa), as galerias e obras trazem uma concepção de arte participativa, envolvente e, não raramente, interativa. Nada de arrogância, bairrismo e pretensão. É arte que toca, mesmo quando não se entende completamente (ou patavinas) - e quem disse que é preciso compreender?
Olhei o preço dos ingressos. Tava caro. Mais caro do que já paguei por qualquer evento na vida. Depois de uns dias de hesitação, pensei que a vida é muito curta, e soterrada por tempo demais de trabalho e obrigações para a gente não se permitir certos luxos. Ainda bem que fui indulgente -e um tanto egoísta, admito-, poucas vezes empreguei meu dinheiro tão bem. Museu de grandes novidades
Chovia e deschovia no sábado em que chegamos à pequena Brumadinho para viver o MecaInhotim, e assim o dia seguiu. Apesar de o evento ter muitas atrações como oficinas, workshops, palestras e intervenções, conseguimos pegar somente o finzinho de tudo, porque chegamos lá pelas 15h de um evento que havia começado ás 9h - o que acabou sendo uma sábia decisão, uma vez que o show do Caê só começaria lá pela meia-noite e, como bem ressaltei, estou velha demais pra festival.
Deu pra ver pouco do Inhotim antes dos shows começarem, os muitos quilômetros de belezura não cabiam no passo curto dos nosso ponteiros. O bom de retornar aos lugares é isso, não ter mais a euforia dos iniciantes, afobados em ver-se tudo que possível. Passamos o dia caminhando, conferindo uma coisa aqui e outra acolá, vendo os personagens do lugar, tomando uma cervejinha e em um dos meus estados preferidos quando se trata das coisas bonitas dessa vida: contemplação.
Ao contrário do que acontece no resto das esferas da vida, as pessoas lá dentro simplesmente não se importavam com a opinião alheia e, consequentemente, a aparência alheia. Cabelos fosforecentes, transparências, óculos surreais, roupas indescritíveis, tecidos furta-cor, brilhos, estampas da pop-cultura, referências folk, gente de camisa pólo e sapatênis, peruas com botas over the knee, barrigudos sem camisa, gordas de cropped, brancos, negros, gays, travestis, trans, lésbicas, homens, mulheres, pessoas com deficiência, crianças, Rodrigo Hilbert, Fernanda Lima, ricos, staff, gente como a gente, gringos, artistas, público. e ninguém se importava em julgar o outro, mesmo com tantos outros. Com tanta natureza, tanta arte, tanta gente, tanta música, tantas atrações, quem se importaria?
Por um momento, cheguei a pensar na palavra "democrático" enquanto escrevo. Mas seria hipócrita falar em democracia para um espaço cuja entrada está na casa das centenas (e sim, no plural). Ainda que eu fizesse parte do grupo seleto, é triste pensar que um lugar assim, em que o direito de ser você mesmo é assegurado e afiançado, seja para os tão poucos com pulseirinhas de acesso.
Mas egoistamente e sem hipocrisia nenhuma, foi revigorante esquecer-me disso por um instante, e estar em um lugar onde tantas diversidades conviveram tão harmonicamente, neste mundo em que o "recénzíssimo" presidente da nação mais poderosa é um xenófobo, machista, racista, elitista, fraudador de impostos e a reunião de muito de toda desgraça que nos acomete.
As minas, os carinhas e o filho do cara
A programação musical refletiu bastante o universo diverso (de rima pretendida) do MecaInhotim. O show de abertura foi da Lei di Dai, uma negona cheia das atitudes e com um som incrivelmente dançante, que eu depois descobri se chamar dancehall. Pesquisando, fui saber que é um estilo musical popular jamaicano do fim dos anos 70, que por definição seria menos político e religioso do que o reggae, mas na prática a teoria é outra. "Trabalhar pra vampiro não tem condição/ O salário é mínimo e máxima a pressão", canta Dai em "Original do gueto". Menos político? E um álbum que se chama #Quemtemfetavivo, o primeiro de "lady", não é desprovido de alguma espiritualidade, ainda que mergulhada em uma mistura deliciosa de referências como o próprio reggae, dub, soul, jazz, hip hop, eletrônica, R&B. Os temperos de samplers com Tim Maia e clássicos do samba como Paulinho da Viola e Cartola são um agrado para quem, como eu, já estava entregue ao som de Dai - mas ainda não sabia cantar suas músicas.
Na mesma onda que dá vontade de mexer o corpo e na mesma resistência de mulher negra e da periferia, Marcela Vale, a Mahmundi, apresentou seu som, que ora lembra Marina Lima, ora traz a memória da Rita Lee pós-mutantes, e traz outras referências oitentistas. Com repertório majoritariamente do seu último disco, que carrega seu nome artístico, o show de pouco mais de uma hora, como todos do festival, trouxe músicas que têm um flerte delicioso e poliamorístico com a música eletrônica, e indie. Uma das autorais, "Sentimento" chegou a ganhar o Prêmio Multishow de 2014 na categoria "Melhor Canção", mas eu nem desconfiava disso enquanto dançava no gramado enlameado do Inhotim aos versos "Se você não estiver/ Pra quem vou cantar?", e pensava que aquela mulher vai ter sempre para quem cantar.
Quando a Dônica, que eu já conhecia, começou a tocar, apertou a vontade de ir ao banheiro, e depois de um dia todo em pé, foi a hora de sentar um bocado também. A molecada, um quinteto encabeçado por Tom, filho do tão-esperado-naquela-noite Caetano, tem um som muito do bacana, nos quais eu, ouvindo anteriormente, já tinha reconhecido traços de Novos Baianos (que amo/sou), Clube da Esquina e psicodelias setentistas, talvez até um pouco de rock progressivo. Mas a chuva e o cansaço foram injustos, e o som do herdeiro de parte da Tropicália acabou sendo ambiente. Um gostoso som ambiente, mas que perdeu minha atenção até que ouço uma das músicas que mais amo do Veloso-Pai, "Um índio", ao som da qual dancei sozinha enquanto todo mundo tinha ido ao banheiro. Ninguém por perto deu a mínima. E não era o meu véio que tinha ido cantar com o filho?
Minha cara, minha cuca
Antes que eu fale sobre o show do Caetano, é preciso saber que eu, pueril e pretensiosamente, tenho uma crença cega de que somos ligados. Não acredito em astrologia, mas amo falar que somos leoninos virados no satanás, nascidos sob o mesmo 7 de agosto. Astros à parte, adoro a certa intransigência com as conformidades que marca muito da obra do Caê, finjo que "leãozinho" foi escrita pra mim, e me espanto em como "Podres Poderes" poderia ser cantada em qualquer época da humanidade, sobretudo da "América católicá" de "ridículos tiranos". Fico encantada com a maturidade com que o amor é tratado em "Nosso estranho amor", que desmitifica o romantismo a la Disney e pede, com franqueza tão brutal quanto delicada "Deixa o ciúme chegar/ Deixa o ciúme passar e sigamos juntos." Lindo.
O show foi um grande karaokê por vários momentos da carreira do Caetano. Sempre haverá quem reclame que o cara não tocou o lado B, que o cara fez o show sentado, que o cara não ficou batendo papo com o público, que o cara tocou uma hora e pouca de músicas que todo mundo sabia cantar. Com SETENTA E QUATRO anos, uma obra que influenciou gerações de artistas e de vidas de tantas maneiras distintas, um pensamento que abriu a cabeça de tantas pessoas, e questionamentos que ajudaram a abrir os caminhos do país (ainda que hoje estejam se fechando, mas isto é outra história), ainda tem quem cague regra sobre o que este (genial) senhor deva fazer? Façam-me o favor!
À cagada de regra, respondi igualmente, cagando. E dançando. E cantando, ao ponto de ficar rouca. Requebrei com o clássico "Eta eta eta", o da "luz de Tieta". Tive certeza de que "Leãozinho" foi pra mim - de novo. Cantarolei "Menino do Rio" mudando o lugar da tatuagem do dragão, piada recorrente com um grande amigo. Coloquei as mãos sobre o peito, como sempre faço quando me emociono, ouvindo "Uma força estranha". Mandei um portunhol arranhado com a versão aclamada de "Cucurucucuuuuuuuu Palomaaaaaaaaaa" e gravei vídeos que ficaram horríveis, com a minha voz igualmente lamentável ao fundo. Choveu e deschoveu. Fiquei com minha cara e minha cuca molhada. Porque "Odara" eu estive o tempo inteiro, de corpo inteiro.
Da grama á pista de dança
No domingo, o Inhotim amanheceu sem o cinza do dia anterior, devo admitir, bem mais bonito. É que as cores ficam mais visíveis, mais contrastantes, e é um deslumbre que não dá pra descrever, só (viv)endo mesmo- além disso, a grama estava seca e dava para sentar, o que me privaria das dores no joelho com que acordei em função da noite anterior. Eu não disse que era velha pra festival?
Vimos - eu faria, mas não tinha mais vaga - uma oficina de passinho maravilhosa, com uma meninada que tinha fogo nos pés e as cadeiras frouxas e malemolentes, e um pessoal que se divertia horrores tentando seguir o ritmo sem ter nascido com tais destrezas. Tudo isso debaixo de um sol daqueles que deixava marca de camiseta.
Comi um rango bacana e num preço justo em um food truck, e depois do almoço e das cervejas que o antecederam pra ficar pensando melhor, bateu uma certa lombeira. Sentamos sob a sombra de uma árvore (e eu não pensei que escreveria esta frase já que não sou Jane Austen) e logo estávamos deitados, quase cochilando. Depois de um tempinho contemplando o nada (e que belíssimo nada), levantei e fui ao parque dos food trucks para ver se andava a fila do corte descolado e modernoso de cabelo que era de graça, mas meu nome estava muito lá atrás. Desisti.
Os shows começaram mais cedo, de dia ainda, e foi bem uma energia bem canga no chão, bem #goodvibes e apesar de eu ter achado um tanto enjoado o som do Serge Erege, muito eletronicão e abstrato, ele ter ficado somente de pano de fundo para o papo espreguiçado sobre a grama, já perto do palco, não incomodou. O som do Opala, que tem Lucas de Paiva e a caçula de Tom Jobim, Maria Luiza, apesar de eletrônico, pareceu mais humanizado, mais vocalizado, e um tanto Björk de raiz. Lembrei-me de quando ouvi a frontwoman no último disco de seu pai, cantando que "O samba de Maria Luiza é bonito pra chuchu". Mas não foi o suficiente pra fazer a gente se levantar, o gramado estava bom demais.
O bailinho de discotecagem que se seguiu após a filha do Maestro Brasileiro sim, impediu que eu continuasse com meu traseiro no chão. A hilária sessão de funks cariocas despertou minha tripla carioquice, sendo nascida no interior do RJ, Três Rios, e me fex explodir em risadas com os versos "Hey Pugliesi, deixa eu comer maionese", peitando a chatitness do "come-e-agacha". Aí não deu mais pra sentar.
Jaloo, uma coisa linda com que o Pará nos presenteou, levantou o resto dos preguiçosos com seu som eletrônico-brega-cool-regional, em uma performance contagiante, baphônica e cheia de simpatia. Conhecia só "Chuva", que desobedeceu à diva LGBT do palco e não atendeu ao "molha, molha", pedido pelos versos. O resto das músicas, a que já ouvi de novo, são uma cadeia de hits dançantes e envolventes: "Vem", "Pa parará", "Insight" e mais tantas outras que não deixavam meus pés sossegarem quietos. "Adoro fazer isso", disse o artista na volta para o bis, depois de ter deixado o palco na clássica manobra. Desafio até aos de coração mais duro a não gostarem de Jaloo. Não dá.
Na malinha de mão do meu coração

Foto: William Gomes/Instituto Inhotim
Liniker, Liniker. Desde a primeira vez que te ouvi, já te amei. Mas eu mal podia esperar que tinha muito mais da sua bagagem pra entrar na malinha de mão do meu coração. De "macaquine", como anunciou a maravilhosíssima backing vocal Renata Éssis, a "bicha preta e pobre", como o próprio artista se descreveu uma vez, deixou o Inhotim, com toda sua magnitude, a seus pés. O repertório, que tem seus momentos dançantes com raízes claras na music e outros que flertam com boleros debochados, além de momentos tocantes e intimistas, é do disco-show "Remonta", com o qual Liniker está arrebatando corações em turnê pelo país. O meu, que já tinha se ido com ele antes de vê-lo, foi-se embora de uma vez por todas.
Liniker dançou, chamou o público ao palco, interagiu com seus Caramelows, desceu do palco e correu pelo público, cantou bis, dançou, fez piada, contou caso. Quando cantou a delicadíssima "Zero", hit do CD e que o alçou à fama, pediu que as luzes do gigante parque se apagassem, e cantou sob a iluminação de telas de celular. Ao final da canção, uma das minhas favoritas, pediu, como repetem inúmeras vezes os versos "Deixa eu bagunçar você, deixa eu bagunçar você...". Como se não estivéssemos já completamente bagunçados por sua voz tão grave quanto doce, o artista, que rompe com concepções castradoras de gênero usando barba, batom, brinco, saia e o que mais quiser, incita, ele mesmo, mais uma bagunça, deixando o palco com um "E fora temer, obrigada!", enfurecendo parte da elite sob a grama. De onde estava, obedeci, e me juntei ao coro do "Fora", e também a uns poucos sonhadores que engataram, em seguida, um "Volta, Belchior".
* Julia Pessoa escreveu sobre o MecaInhotim a pedido da Av. Independência.
Obrigadx!
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