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Age of Aquarius

  • Júlia Pessôa
  • 7 de out. de 2016
  • 3 min de leitura

Imagem: acervo gratuito WIx

Não ia ao cinema há muito tempo. Mais de um ano, mais do que minha vergonha me permite revelar. Entrei de férias e não tinha desculpa: veria Aquarius, no cinema, de qualquer jeito.

O filme já tinha me conquistado pelo trelelê político que causou: o elenco lindamente denunciando o golpe, em pleno tapete vermelho de Cannes; o honradíssimo (cof, cof, cof!) Reinaldo Azevedo regurgitando que “o dever das pessoas de bem” era boicotar o longa; e last, but not least, a sacada de malandramente inserir tais dizeres no cartaz promocional do filme. Eu, que tenho meus lapsos de maldade, corri para o cinema, desobedecendo Reinaldo.

Não se preocupem que aqui não tem spoiler, quer dizer, não muito. Ok, nada relevante. Sobre todo o quiprocó que deixou Reinaldo e a coxinhada apavorada, direi apenas isto: em momento algum Aquarius toca em questões essencialmente políticas. Mas é claro que elas estão lá, como em tudo que se faz na vida.

Na minha leiguíssima leitura de cinema, o paralelo que se pode traçar é essa sensação que eu você e tanta gente não conseguimos afugentar desde que zombaram do direito ao voto e mataram a democracia. Esse senso inalienável de que estão nos tirando direitos, coisas, conquistas à força, debaixo dos nossos narizes, e ninguém faz coisa alguma. Esse sentimento de querer se agarrar à corda, e, ao mesmo tempo, ter a palma da mão calejada pelas fibras que escorregam nos vãos dos dedos.

Há quem tenha amado o filme e quem tenha odiado, por razões que nada têm a ver com politica. É um filme contemplativo, de personagem, que realmente nem todo mundo encara. Mas eu me apaixonei.

Faz muito tempo que minha vida andava sem som. Não andava com fone, andava meio puta de ter que pagar serviços de streaming pra ouvir música, chegava em casa e ouvia o barulho do silêncio; da minha agenda semanal mental ou, pior: o da TV, enquanto fazia alguma outra coisa.

Mas depois de Aquarius não. Logo nas primeiras cenas, embaladas pela trilha de uma fita cassete, como tantas que já gravei na vida, o filme me ganhou com a trilha. Seguindo o enredo, clássicos da minha infância ouvidos pelos adultos nas festas de família trouxeram uma sensação de pertencimento e familiaridade que logo me fizeram aconchegar na poltrona, já que não podia levantar e dançar, engrossando o coro dos versos de Gil : “Ah-ah-ha-ha Que Deus deu! Oh-oh-oh-ho Que Deus dá!” Fui às lágrimas em uma cena completamente desimportante, só por conta de uma troca de olhares fulminante para um coração de Humanas, alimentado por MPB desde pequenininha, enquanto a vitrola explodia a emoção de “Pai e mãe”, também do pai da Preta e da Bela. E os encontros só foram fortuitos. “Ave Sangria”, uma banda que havia conhecido só este ano, faz figuração, e pensei no quão incrível era poder entender aquela referência. John Lennon, Taiguara, Roberto Carlos, Altemar Dutra, Freddie Mercury, Villa-Lobos, Alcione, Reginaldo Rossi... Uma miscelânea formidável, que materializa e contextualiza cada sentimento vivido em cena. Para mim, a trilha foi a grande protagonista do tão falado longa, ao lado, sem qualquer dúvida, da maravilhosíssima Clara de Sônia Braga – esta, em seu melhor papel da vida.

Como eu pude me esquecer, por um diazinho que seja, do poder transformador da música? Da chance de dar o tom de cada cena, não apenas em Aquarius, mas na vida? O ônibus lotado, dotado de fones de ouvido, não o é somente, mas a pausa no dia para escutar o disco de uma bandinha nova, com músicas curtinhas. A cidade tem a trilha que nossos smartphones carregam, mais triste, alegre, sombria ou com fogo no rabo, depende do que a playlist prega em nossas orelhas. As fossas, ah, as fossas! Duram o tempo de ouvir um disco do Morrisey, ou quem sabe do Fagner das antigas, para logo dar lugar a um “Não Enche” do Caetano, ou “Survivor” na versão bonitinha e passivo-agressiva da Clarice Falcão. Além do mais, quem nunca quis deixar o destino e as decisões nas mãos do shuffle?

Saí do cinema com vontade de ouvir todos os discos da Clara, com ela, por quanto tempo o Kleber Mendonça quisesse deixar que o filme continuasse, mas os créditos subiram. Baixei o Spotify de novo, paguei um novo plano e vi que absurdo não é pagar por streaming. É não ter trilha na vida.

 
 
 

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