Um cheiro em JF: Liniker e os Caramelows transfiguram a nova Música Preta Brasileira
- Carime Elmor
- 27 de jan. de 2017
- 6 min de leitura
Fotos: Ana Cláudia Ferreira

A Black Music, ou Música Negra, tem um histórico precioso na cultura brasileira, indo do samba ao funk, soul, blues e rap. O Brasil foi palco para Cartola, Zezé Motta, Elza Soares, Leci Brandão. Poderíamos fazer um texto só para citar de forma justa os muitos nomes que formam esse todo que é a música negra no nosso país, numa linearidade que passa por Itamar Assunção, Tim Maia, Gerson King Combo, e deságua na produção autoral recente protagonizada por gente como Carol Conká, Negra Li, Tássia Reis e mais dezenas de bandas independentes de baile, como a Black Papa. A cantora Liniker parece trazer tudo isso em remix, transfiguração, em parceria com os Caramelows, desde 2015.
O mundo parece estar sedento por artistas que falem, se sintam e transpassem uma verdade de mundo que envolve várias realidades, às vezes deixadas de lado no mundo musical e artístico. Aqui vale a pena usar a palavra representatividade, não consigo encontrar outra para entender o impacto de Liniker na comunidade negra e LGBT, essa é uma opinião reforçada não só pelos fãs, mas pelos próprios integrantes da banda durante entrevista que tivemos antes do show. Seu visual andrógino e a maneira como fala a respeito de si e se comporta no palco me faz lembrar, em alguns aspectos, de artistas como David Bowie, Iggy Pop ou Ney Matogrosso, porém com personalidade e característica próprias, mas que vale a comparação, uma vez que gera esse fascínio de mesclar o domínio musical e teatral, desconstruindo os padrões de gênero.
Liniker e os Caramelows se apresentaram no dia 20 de Janeiro, no Cultural Bar, em Juiz de Fora, com o show na turnê Remonta, o primeiro full album da banda, lançado em setembro do ano passado. Para dar início àquela noite, o DJ Pedro Paiva, do projeto Vinil é Arte foi convidado para discotecar sons afins ao que estaria por vir. Alessandra Crispim trouxe seu samba para encerrar a noite (no caso, já madrugada). O que escrevo aqui é resultado de uma entrevista com os Caramelows, antes do show e uma conversa com a Liniker, depois da apresentação. Mas é antes de tudo o relato da experiência de uma fã-jornalista.
Deixa eu bagunçar você
Quando Liniker entrou com um cropped e calça cintura alta, me veio à cabeça a imagem de Bowie com um vestido dourado brilhante no vídeo de Boys Keep Swinging. Mas no caso de Liniker, sua realidade social, sua luta e resistência pessoal refletem de forma direta em seu trabalho, ali não é um alter ego, é Liniker e sua história pessoal sendo contada através de sentimento. De cara, ela rasga o instrumental cantando esses versos a capella: “Como se não bastasse a guerra também de te ver todo dia, meu bem, tenho o dissabor dessa ferida, que germina na pele, insiste em ficar”.
Está claro que o que vem por aí é música de “transplodir” os corações, termo utilizado por uma fã dos Caramelows e adotado por eles desde então. Sentimento a flor da pele, olho no olho, sensação e emoção é o que Liniker diz querer passar em seus shows. É sobre amor. Tudo aqui é amor. Mas um amor remontado, ressignificado, afinal de contas, o pensamento do mundo já avançou um tanto e o amor precisa ser desconstruído para se reconstruir de outra forma. “Um amor de construir relações, reconstruir a gente mesmo de forma interna para ter espaço para que novas coisas aconteçam. Remonta tem muito esse sentido de uma coisa que se ressignifica o tempo inteiro, e uma forma também para a gente se estruturar a fim de estar livre para amar, amar e amar”, explicou Liniker, em conversa no camarim pós-show.
Confira a conversa da Carime com a Liniker, no Youtube da Avenida:
Para completar o look, Liniker apareceu sem barba, cabelo black e dois maxi brincos redondos. A androginia estava menos escancarada, o feminino sobressaía naquele corpo com expressão lânguida e sensual. O teatro está em sua carne, e por isso, o show vai muito além do que um concerto musical. A banda Caramelows, que a acompanha, é formada por uma backing vocal, Renata Éssis, que fez parte da Escola Livre de Teatro de Santo André, junto com Liniker, de acordo com elas um espaço de resistência para artistas que contribuiu muito para a construção de quem é Liniker, sua voz e sua performance no palco. No grupo estão também o baixista Rafael Barone, com uma extensa trajetória musical na música independente brasileira; o baterista Péricles Zuanon, que tocava em uma banda de metal; o trompetista Márcio Bortoloti, um músico com também mais de 10 anos de experiência; e o guitarrista William Zaharanszki, que toca violão desde menino e tem uma pegada bem de rock e blues.
Em uma conversa que tive com os Caramelows durante a passagem de som, trocamos muitas ideias sobre ser um artista independente no Brasil, e como essa mistura de sensações e gostos forma algo na música tão precioso, verdadeiro e pessoal. Cada vez mais o(s) gênero(s) em todos os sentidos torna-se um só. Cada um pode ser seu próprio gênero de acordo com o que deseja para si. Assim também vejo a música, é por isso que é tão difícil categorizá-la em um só nome. Ou seja, assim como Liniker consegue performar de uma forma que rompe qualquer definição marcada pela rigidez binária do homem e da mulher, as músicas são livres de gêneros bem definidos.
A música Louise de Brésil esquentou a noite de verão e calor, deixou as pessoas suadas de tanto dançar, como um bom baile deve ser. O público antecipava a letra cantando bem alto, até o solo de saxofone parecia saber de cor, enquanto Liniker se perguntava incrédula: “gente, o que é isso?!”. Continuando o show, eles tocaram BoxOxê, o primeiro single do álbum, que foi gravado com a banda Aeromoças e Tenistas Russas e teve participação no vocal da Tássia Reis e seu Rap(jazz). Nessa hora fomos levados a sintonizar a fictícia Rádio Funzy Especial Juiz de Fora, funzy é como eles chamam a própria música, a mistura de todas as referências brasileiras e gringas que aparecem ali. A partir deste ponto, a apresentação virou um programa de rádio, em mais uma performance que enriquece a arte do grupo para além da música.
Remonta é como um diário da Liniker desde sua adolescência até o início da fase adulta, cada poesia foi musicada contando, principalmente, histórias de amor e de si própria em relação à vida e o outro. Então, antes de começar Você fez Merda, ela explicou: “Essa música é uma carta textão para um boy escroto, porque a gente não é obrigada a nada nessa vida”. Com 16 anos ele escreveu essa história que se tornou uma das músicas de seu primeiro disco. Nesta canção, Liniker pegou Márcio (trompete) pela mão e os dois dançaram juntos ao som da baladinha. A música seguinte é uma inédita, chama-se Pra Ela, e é um blues dedicado a uma pessoa muito importante em sua vida, sua prima. Quando Liniker tinha 18 anos, ela lhe disse que sempre ficaria junto a ela na resistência e na luta. Consequentemente, Liniker aproveitou o momento e fez um belo grito de militância e representatividade negra: “Ser preta em qualquer lugar do mundo é lindo sim!”, uma homenagem a todas as mulheres negras presentes e também relembrando de sua mãe, Angela, que sempre te deu apoio em todos os momentos de sua vida, na música e em sua desconstrução de gênero.

A noite continuou com Zero, música que deu maior projeção ao grupo após lançarem um vídeo no Youtube, há menos de dois anos! Cada suspiro e grito foi acompanhado pelo público que a cantou inteira em conjunto. Em seguida, em um momento introspectivo do show, Liniker sentou-se em uma cadeira no canto do palco e começou a cantar os versos apaixonados: “Você tem flores na cabeça e pétalas no coração”, enquanto uma flauta transversa deixava aquele momento ainda mais intimista. Até que, em contraste à Sem nome, Mas com endereço, Lina X agita o público e mostra que é a hora do show para se libertar. Talvez seja a faixa mais pop e dançante do Remonta. Ralador de Pia trouxe um pouco de fôlego para o público, até que Prendedor de Varal, começou. Nessa hora todo o público ultrapassou a barreira que havia entre palco e pista, as pessoas se juntaram bem pertinho do palco para sentir ainda mais a intensidade do show. Para quem quiser conferir, a música tem um clipe em 360°, gravado no MIS – SP durante o Video Music Festival:
Seguindo o bonde, foi aí que começou Tua, quando Liniker, em clima sedutor, contiuou sua dança feminina enquanto parecia arrancar do fundo da alma o trecho “Quero andar por aí, descalça, sem nada, ao lado de um vinho bom”. Para fechar o show, Caeu, mais um hit que lançou Liniker. Antes que começassem a tocar, Renata Éssis contou que um dia, ao chegar à casa onde morava com Liniker, ouviu um barulho de choro e violão vindo do banheiro, até que de repente ela sai com a música Caeu e começa a tocar. As luzes se apagaram, os músicos e as musicistas agradeceram o carinho, mas os gritos e palmas logo se organizaram em um pedido de bis, entusiasmados eles voltaram e fizeram Louise de Brésil para encerrar em alto astral.
Quem os assistia de alguma forma se libertou e permitiu-se ser bagunçado naquela noite. Liniker bagunçou no sentido de trazer inquietude interna, provocar a liberdade de conseguir se desconstruir sempre internamente para depois se remontar. É isso.

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