Uma noite equatorial: Notas sobre a turnê do “disco do tênis”, de Lô Borges
- Ana Cláudia Ferreira
- 24 de mar. de 2017
- 6 min de leitura
Fotos: Henrique Perissinotto
Há histórias que precisam ser relembradas e transmitidas por gerações, pois inundam a realidade de ficção, constroem uma ponte sutil entre o passado e presente e alimentam nossos desejos ainda não envelhecidos. Os adjetivos ao longo do texto estão incontroláveis, mas é porque a história que me proponho a contar hoje é a do lendário “disco do tênis,” produzido em 1972. E do segundo show da turnê. O álbum que aguça a curiosidade do público, seja pelo primor técnico e criativo, seja pelos solos de guitarra ou até mesmo pelo contexto de criação.
Lô Borges realizou uma proeza que é privilégio de poucos: assim que terminou a gravação, botou a mochila nas costas e foi viajar pelo Brasil, retornando apenas seis anos mais tarde. Nunca se ouviu falar em um show do disco do tênis, ou que o artista cantou alguma música do álbum em suas apresentações. Agora, em 2017, exatamente 45 anos depois, o músico sai em turnê com nova formação da banda, que reconstitui, com perfeição, a formação original. Toda essa carga mítica, musical e artística se materializou no palco do Cultural Bar, no dia 18 de março.

O começo
O caçula Lô Borges cresceu ao redor de Márcio Borges, seu irmão, de Bituca (sim, ele ainda não era o Milton), de Fernando Brant, de Beto Guedes, e de outros músicos que frequentavam a casa dos Borges, no Edifício Levy, na capital mineira, entre as década de 1960 e 1970. O Brasil vivia sob o Regime Militar e uma efervescência na música popular brasileira. Os festivais aconteciam em cada canto do país. Da mesma forma, acontecia a censura da Ditadura Militar.
Márcio Borges era sete anos mais velho que Lô, sempre foi inspiração para o caçula, que acompanhava seus passos e começou a compor desde os dezesseis anos. O irmão mais velho era o entusiasta do grupo, se inscrevia em festivais do colegial, e carregava Bituca, Beto e Lô para os palcos. A história é contada por Márcio Borges, no livro “Os sonhos não envelhecem - Histórias do Clube da Esquina”, lançado em 1996. Uma das apresentações aconteceu no 1° Festival Estudantil da Canção de Belo Horizonte, Bituca teve que ficar na plateia, pois não era estudante. Apresentaram a música “Equatorial”, primeira composição de Lô. Eles ficaram com o segundo lugar. Na mesma noite, Lô compôs no piano a canção “Para Lennon e McCartney”. Apresentou ao grupo, indicou um tema e a letra foi criada na hora por Fernando Brant e Márcio Borges.
“Lô para Márcio Borges e Fernando Brant: - Então? Vocês não querem meter uma letra nisso não?
- Só se for agora – respondeu Fernando.
- Qual é o tema que você pensou pra ela? – perguntei
- Na verdade, eu estava pensando na parceria do John e do Paul... nas parcerias, né. A gente aqui, também fazendo as nossas... e eles nunca vão saber. Mas pode ser outra coisa qualquer que vocês sentirem – Lô se apressou em dizer.
- Por mim esse tema está ótimo – disse Fernando.
Em menos de meia hora, portanto estávamos de volta à saleta do piano. [...] Lô cantou pela primeira vez os rabiscos que colocamos diante dele, na estante do piano. Na minha parte estava escrito:
Porque vocês não sabem
do lixo ocidental
Não precisam mais temer
Não precisam da timidez
todo dia é dia de viver
Porque você não verá
Meu lado ocidental
Não precisa medo não
Não precisa da solidão
Todo dia é dia de viver...
Na parte de Fernando estava escrito:
Eu sou da América do Sul
Eu sei vocês não vão saber
Mas gora sou cowboy
sou do ouro, eu sou vocês
Sou do mundo, sou Minas Gerais.
O movimento Clube da Esquina já tinha se formado e deu nome ao primeiro álbum, gravado no início de 1972. As letras eram escritas em processo coletivo, durante os encontros na esquina da Rua Divinópolis, no Bairro Santa Teresa, ou em noites que não tinham lugar para acontecer. Lô tinha apenas 20 anos, e era responsável por muitas as canções e pela juventude inovadora do grupo.
“Quase sem que me desse conta Lô havia se transformado de um menino curioso, sempre por perto, cismado e silencioso, num jovem bonito, de olhar penetrante e ideias profundas, compositor refinado e fecundo. Desde aquela tarde em que fizéramos nascer o ‘Clube da Esquina’, junto com Bituca , Lô estava compondo cada vez mais e melhor”, contou Márcio no seu livro.
Seis meses depois, Lô viria a gravar o “disco do tênis”, pois tinha um contrato com a gravadora. O processo de produção foi intenso: tinha dia que chegava no estúdio sem música e a criação era feita sob pressão. Os músicos envolvidos inovaram na experimentação sonora e nos ritmos, a cada dia era preciso criar algo diferente e de imediato. O álbum é composto por 15 músicas em parceria com Márcio Borges.
O processo de criação foi tão absurdo, que Lô totalizou mais de 25 músicas compostas para o “disco do tênis” e para o álbum do Clube da Esquina. Aquele ritmo de vida não fazia sentido para um jovem de 20 anos. Então, Lô gravou: “jogue sua vida na estrada/como quem não quer fazer nada/ ouça bem as vozes do mato/como quem abriu seu coração/eu sonhei outro mundo, meu amor/e a paz morava na nossa casa/mil pessoas como nós/sem palavras por viver”, letra da música “Faça seu jogo”. Tirou o tênis, pediu para que fizessem uma foto para a capa do disco, botou o violão nas costas e caiu na estrada. A viagem durou cerca de seis anos, e oito anos depois, gravou “Via Láctea”.

O show
Em comemoração ao seu 19° aniversário, o Cultural convidou o Trio O’clock para abrir a casa e a banda Novo Jornal para encerrar, com nostalgia, a noite de encontros cósmicos. A casa estava lotada. Era a segunda vez que eu presenciava um show do Lô Borges no local, mas essa noite tinha um diferencial. A turnê do disco do tênis teve início em janeiro de 2017, e segundo artista, era a primeira vez que o show acontecia em um bar, o que permitiu a proximidade da banda com o público. A turnê foi idealizada por Pablo Castro, músico mineiro que convenceu Lô a reviver o álbum.
A banda é composta por jovens músicos, coordenados por Pablo, também integrante, que reproduziram, com perfeição, os acordes originais do disco. “Até meus erros eles reproduziram”, comenta Lô durante o show. São eles: Guilherme De Marco (violão, guitarra e vocal), Marcos Danilo (violão, guitarra, percussão e vocal), Alê Fonseca (teclados), Paulim Sartori (baixo, bandolim, percussão e vocal) e D’Artganan Oliveira (bateria, percussão e vocal).
Outras histórias surgiram ao longo da apresentação sobre estas lembranças e o remonte desse disco, curtinho, que guarda uma riqueza de instrumentos e experimentação de tirar o fôlego. Tem bandolim, tem canção e emoção. Em todos os shows que Lô Borges realizou ao longo da carreira, nunca havia cantado uma música do “Tênis”. Ele não sabia que o disco era tão querido, seu espanto é transmitido no palco, enquanto conversa com o público e conta detalhes de como cada música foi produzida.
Antes de tocar “Pensa você”, ele contou que nesse dia foi para o estúdio sem música alguma. De manhã compôs, à tarde fez o arranjo e gravou à noite. Houve momentos em que compôs músicas tristonhas, foi o caso de “Como o machado”, censurada pela ditadura militar. Assim que ele finalizou a música, foi possível ouvir o primeiro grito “Fora Temer!”, em instantes, todo o bar estava em um coro que foi encerrado com o último grito de “Fora Temer!” da noite: o de Lô.

A segunda parte do show é composta pelas músicas que Lô gravou no Clube da Esquina, a primeira foi “Para Lennon e McCartney”, depois “Nuvem cigana”, “Um girassol da cor do seu cabelo”, e foi ficando difícil guardar a nostalgia, que eu nem vivi, no peito. Havia uma mulher mais velha ao meu lado, e ela muito emocionada me perguntou: “Você já era nascida?” Eu, com os olhos em lágrimas, disse que não. Ela completou com um sorriso: “Que incrível!” Mesmo não tendo vivido em 1972, me transportei para lá (ela também) e recriei a época do meu imaginário.
Talvez seja a simplicidade e juventude (estado de espírito) que o artista leva para o palco, que encanta as novas gerações e que faz o álbum carregar a aura mítica e a energia de cada experimentação. Talvez seja a memória que nos envolve em um sentimento coletivo de afeto e êxtase, nos impulsionando à mudança. Ou pode ser apenas a certeza de que nada será como antes.
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