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A poesia é a única saída: Raí Freitas e LG Lopes tocam no Maquinaria

  • Karoline Discaciati e Túlio Matos
  • 30 de mar. de 2017
  • 7 min de leitura

Fotos: Pedro Henrique Rezende

Não me recordo de um dia 24 de março tão aconchegante quanto esse. Geralmente as massas de ar frio gostam de chegar a Juiz de Fora assim que Outono diz que tá liberado, mas dessa vez nós tivemos duas figurinhas cheias de calor pra trocar e harmonia pra tocar. Raí Freitas e LG Lopes tocaram em um cenário tão aconchegante que a galera preferiu ficar dentro do estúdio do Maquinaria pra fazer parte do espetáculo.

De pés descalços em cima de um tecido senegalês estampado em azul e amarelo, cercado de luzes amarelas, azuis, roxas, vermelhas, verdes e brancas e olhando pra uma porção de almofadas ocupadas, Raí inverteu a lógica do Outono e deixou o frio na saudade. “Dibre Certeiro” foi a música escolhida pra avisar que quem não marcasse direitinho, podia perder alguns lances importantes já que a maioria do repertório não estava no EP “O Andarilho”. “Palavras” já faz parte da playlist de uma galera e, por isso, foi cantada em coro. Raí finalizou a música com duas cordas. Os dedos foram criando as vibrações que, como fonemas depois de um grito longo, pouco a pouco foram morrendo.

“Lis”: três letras resumiam a terceira música. Esta não está presente no EP do músico, mas ainda foi cantada em coro. A canção desfilou para o público como quem diz “sou linda, mas trago verdades”. Geralmente marcada pela percussão forte, foi apresentada dessa vez em voz e violão e repetia, sem perder o charme: “eles querem de nós o tempo, a força, a terra/ eles querem de nós, em troca, relógio, salário, a guerra”. Sorte que a mão que bate é a mesma mão que toca e afaga e Raí tocou “Não fique triste”. Um conselho e tanto para quem acabou de tomar uma porrada como foi Lis. Como se não fosse o suficiente, Raí percebeu que a gente precisava de um “Abraço” e veio de coração aberto e alma livre contar que, aqui, “a frieza não impera” e, com uma linha de violão muito forte, tudo voltou a ficar quentinho.

Raí Freitas gravou um dos episódios da web série Música na Faixa. Confira:

Depois, veio a recém descoberta “Marcha Rancho”. Eu não sei o que é uma marcha rancho, mas a avó do Raí classificou a música assim. Então, podemos constatar que a música Marcha Rancho está na categoria marcha rancho (Fonte: Avó do Raí). Buscando nos termos que eu conheço, cheguei à conclusão de que ela é um quase samba, quase circo, uma delícia de ouvir, mas eu acredito no conhecimento dos mais experientes.

“Nicanor” é uma música pesada e marcante. Entre as passagens, eu tinha a impressão de que o nome “Iara” era gritado, mas, de acordo com ele, é só um aleatório emitido vocalmente. Raí disse que deixou pro final uma música pra todo mundo cantar e externar as energias. “Canto Torto” foi um canto cantado por várias vozes que, sabendo que era a última música, pôde sentir a pontinha do iceberg do trecho “mico-leão, se achegue aqui e me diga se na evolução constava essa vontade de não ir embora”.

O Raí se levantou e recebeu aqueles olhares de “como assim você tá saindo?”, um olhar poderosíssimo que o fez sentar de novo e perguntar o que as pessoas queriam ouvir. As pessoas pediram principalmente “Habitat” e “Holograma”. Como bem disse o primeiro parágrafo, Raí estava cercado de luzes amarelas, azuis, roxas, vermelhas, verdes e brancas. Era inevitável a chegada de “Holograma”, música nascida do sentimento de existir no meio de uma cidade grande.

Da almofadinha para o palco

Do meio das almofadas surgiu uma voz perguntando: “Vocês querem fazer um intervalo? Dar uma respirada? Ou vamo continuar?”. LG Lopes, no auge da sua almofada quentinha, foi levantado meio maravilhado e assumindo o posto no tapete senegalês. Ainda tinha gente do lado de fora, então ele mandou um “chega mais” e, durante a introdução de “Amigo”, foi brincando de flautista mágico enquanto todo mundo se encaixava de um jeito confortável. LG contou que jurava que essa música era famosa entre todos, mas depois descobriu que ela é um sucesso entre a família dele, onde nasceu a música. Terminou com uma percussão de unhas na madeira do violão, criando um efeito bonito com as notas marcadas.

A segunda música trouxe um spoiler do próximo álbum, que ele chamou de “Mana”. A canção “1986” dá um sinal bom sobre o que tem por vir. A música que veio em sequência, do álbum “Passando Portas” veio com o que o LG chama de interação imediata com o público. Se todo mundo não fizer dois assovios, a introdução fica sem assovios, portanto menos divertida. Perfeito, né? Depois, como já diz a música, a poesia virou alimentação. Chegou “O fazedor de rios”, chegaram mais pessoas que olhavam e falavam “cabe não” e alguém em alguma almofada respondia “cabe sim!”. E essa foi a nascente para a sequência de músicas do álbum que leva o título dessa música, ou vice-versa.

A próxima música traduzia um pouco do momento, “saber ouvir, saber fazer alguém cantar” era o que todo mundo estava fazendo. Quando acabou a música, LG falou: “Em tempos tão difíceis, é revolucionário a gente se juntar em torno de uma coisa tão abstrata como a música”.

A sétima música, composta pelo LG e por Téo Nicácio em homenagem a uma senhora muito pensativa, muito reflexiva e por vezes filosófica que morava com eles: “Yoko”, a cachorrinha, e a letra traz uma das possíveis perspectivas de cachorro sobre o mundo. A oitava música era como uma grande esfinge nos desafiando a traduzir coisas abstratas em palavras, o que se tornou um jogo bem proveitoso e recomendável para brincar de entender o mundo e suas belezas.

Depois, veio mais um momento de libertar os demônios: “Haux Haux” é um grito usado para isso em alguma tribo do mundo que foi usado pelas pessoas para acompanhar essa música pesada. A décima música foi dedicada à todas as crianças, as por idade e as interiores, e falava de uma pureza de encher os olhos; uma das melhores perspectivas que eu conheço, quase empatado com a de Yoko, a cachorra.

“Talismã” veio trazendo a “Carta Convite” das composições do LG com a galera do Graveola no álbum Camaleão Borboleta. Na segunda tem uma passagem que diz “acordei só”. Felizmente isso não acontece quando o LG canta. O camaleão borboleta está se tornando uma criatura cada dia mais popular. A décima terceira música foi “Vinheta”, que, pra enxergar beleza nela, “é só ter olhos pra ver”.

“Pra que a gente continue sonhando” foi como o LG apresentou a música da vez. Funcionou como um “Lembrete” pra que ninguém parasse de fazer isso. Para finalizar, ele nos contou sobre uma das suas vontades que ele acredita que todo mundo sinta de vez em quando. De acordo com ele, todo mundo deve se sentir um pouquinho filho do Gil. As ideias dele estão por aí e de, vez em quando, pegam a gente de surpresa, por isso, todo mundo repetiu várias vezes “quero fazer um exame de DNA para provar para o Brasil que eu sou filho do Gilberto Gil”.

Ir embora foi ruim.

Fim.

Sobre conexões intergaláticas, percursos cíclicos e a regressão ao próprio eu

O Graveola faria um show no Rio de Janeiro no domingo seguinte e LG Lopes pegaria estrada logo cedo no sábado. Não negou, no entanto, o pedido de uma conversa sobre o momento compartilhado no Maquinaria. Sentamos no estúdio novamente.

Falamos sobre os percursos cíclicos da vida, sobre seguir em frente e ainda assim, revisitar lugares de tempos em tempos. LG esteve em Juiz de Fora duas vezes no último trimestre do ano passado. “Cada lugar ensina uma coisa, e ao mesmo tempo, tudo se conecta numa caminhada meio contínua. Não tem começo, meio e fim, é tudo um processo”. Em meio a shows do Graveola e solo, muitos deles em parceria com Téo Nicácio, a estrada vem sendo quase sua casa desde dezembro.

A busca por ambientes mais intimistas é constante. “É uma busca pela vibração da escuta, porque uma das coisas que a gente perdeu muito na contemporaneidade é a capacidade de escutar". Se a vida é composta de processos cíclicos, é natural que, além de retornarmos aos mesmos lugares, nos esbarremos com as mesmas pessoas, vez ou outra. Talvez seja o que os Novos Baianos chamassem de “Lei natural dos encontros”. LG chamaria de ressonâncias naturais. É a terceira vez que traz sua música a Juiz de Fora num curto espaço de tempo, a segunda com abertura de Raí Freitas, e mais uma vez, passando aqui pela Avenida Independência. “Eu tenho uma impressão de que existe uma espécie de tribo intergalática, uma aldeia planetária em que a gente sempre acaba encontrando as pessoas certas. Seja em Juiz de Fora, a gente se conecta com pessoas que estão na mesma vibração”.

Sobre tentar se encontrar na ancestralidade, tema recorrente de suas músicas, acredita ser uma busca da vida inteira. “A descoberta da ancestralidade veio pra mim desses conhecimentos que a gente guarda no corpo, dessa memória que a gente tem sem saber muito bem de onde vem. Eu acho que a ancestralidade tem a ver com esse canal que a gente constrói de diálogo com tempos outros da cultura e da nossa própria história astral”. Isso acaba reverberando em seu próprio método de composição, muito baseado em referências, hipertextos, numa grande teia de ideias.

O tempo era curto. A última pergunta era direta, mas talvez não tão simples: por que insistir em fazer da poesia, alimento? “Eu acho que é a única saída, a única forma de não deixar que a dureza dos tempos enrijeça a nossa matéria sensível interna. Os encontros, as construções coletivas, isso tudo é material pra manter a chama da resistência. Nesse momento que a gente está vivendo mais do que nunca, porque não é um divertimento, uma distração; é uma coisa revolucionária”.

Assista à entrevista que a Avenida fez com o Graveola:


 
 
 

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